Um mangá pós-Fukushima
Himizu
O desastre de Tohoku, no Japão, em 11 de março de 2011, acumulou três tipos de ocorrência: um maremoto, que provocou um tsunami, que por sua vez atingiu um reator da Central Nuclear de Fukushima, liberando grande volume de radiatividade por uma extensa área no centro do Japão. Foi considerado a maior calamidade sofrida por aquele país desde o lançamento das bombas de hidrogênio em Hiroshima e Nagasaki durante a II Guerra Mundial. E também o mais grave acidente nuclear depois de Chernobyl.
O evento foi amplamente coberto pelas televisões e em documentários. Já em outubro de 2011, o Festival de Yamagata apresentava nada menos que 29 realizações documentais sobre o assunto. Entre 2012 e 2014, vários filmes de ficção foram ambientados naquela área, mas o pioneirismo coube ao excêntrico diretor Sion Sono. Menos de três meses depois do ocorrido, Sono já acionava suas câmeras para filmar a comédia dramática Himizu (2011).
O roteiro, baseado em mangá de Minoru Furuya, já estava pronto quando o desastre aconteceu. Sono resolveu inserir as referências na história do adolescente Yuichi (Shota Sometani), que é abandonado pela mãe, espancado seguidamente pelo pai e obrigado a gerir um negócio de aluguel de barcos da família. Ele almeja ser uma pessoa comum e um homem responsável, mas os abusos e as dívidas do pai à máfia Yakuza o levam a entrar num círculo de violência que culmina com o parricídio. Yuichi tem dificuldade em aceitar a ajuda de Keiko (Fumi Nikaido), uma colega de escola obsessivamente apaixonada por ele, e de um pequeno grupo de adultos desabrigados pela catástrofe, que perderam tudo, vivem em barracas próximas de sua casa e veem no garoto o futuro do país.
Existe no filme a intenção de sugerir o trauma da hecatombe através de uma agressividade exacerbada e permanente, que afeta até mesmo o ensaio de namoro entre Yuichi e Keiko. Os pais de um e de outro incitam os filhos ao suicídio para retirar um peso de suas vidas e fazer jus aos prêmios do seguro. Yuichi lamenta que o pai não tenha morrido no tsunami. As ressonâncias da catástrofe aparecem em reportagens da televisão e em esparsas alusões dos personagens. Um professor comenta com os alunos a sucessão de fatalidades que atingem historicamente o Japão. Há os canalhas que saqueiam e se aproveitam da situação, assim como os psicopatas que atacam pessoas à revelia nas ruas. Em contraponto a tudo isso existem a camaradagem dos desabrigados e a semente de afeto que se insinua, entre tapas, no jovem casal.
Somente algumas poucas cenas de Himizu foram filmadas nas áreas mais afetadas de Tohoku, onde Sion Sono fez curtas inserções dos atores. No entanto, ele gravou muitas imagens de completa devastação, que são tratadas de maneira expositiva em travellings à altura do chão ou em tomadas aéreas rasantes. Essas cenas recebem um enfoque diferenciado, sem integração objetiva com o presente dos personagens. Figuram como lembranças dos que perderam suas casas ou como sonhos antecipatórios de Yuichi. São cenários que projetam o desespero das pessoas no mar de destroços deixados pelas ondas.
Essa relativa inorganicidade, causada não só pela disjunção das cenas na narrativa, mas também pelo tratamento visual mais fluido e de cromatismo rebaixado, contribuiu para as críticas negativas que o filme recebeu no Japão e fora dele. Himizu foi tachado de "raso" no enfoque da tragédia e "incoerente" na conciliação da violência burlesca do mangá com a realidade da catástrofe.
Sion Sono, porém, não se deu por vencido. Após um relativo sucesso em festivais internacionais, ele avançou com a ressignificação das paisagens da região em Terra da Esperança e A Estrela Sussurrante, dos quais trato no módulo Modo ressignificante.
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