O Trümmerfilm
Os Assassinos Estão Entre Nós / ...und über uns der Himmel / Zwischen Gestern und Morgen / Irgendwo in Berlin / Berliner Ballade / Asas do Desejo / Das Leben geht weiter / Unter den Brücken
A obra inaugural do Trümmerfilm (filme de escombros) foi justamente o primeiro longa-metragem de ficção produzido na Alemanha após a II Guerra e a primeira produção da DEFA, a empresa estatal que dominaria o cinema da Alemanha Oriental nas décadas seguintes. Wolfgang Staudte realizou Os Assassinos Estão entre Nós (Die Mörder sind unter uns) nos primeiros meses de 1946, no setor de Berlim controlado pelos soviéticos. O roteiro original do próprio Staudte tratava do encontro entre um médico traumatizado por um incidente da guerra e uma mulher que retorna de um campo de concentração.
Desde a imagem inicial – sepulturas improvisadas na rua em meio a prédios desmoronados e montes de entulhos –, o Dr. Mertens (Ernst Wilhelm Borchert) é apresentado como o homem-ruína: bêbado, derrotado, esvaziado de alma. O trem que traz Susanne (Hildegard Knef) de volta a Berlim propicia uma panorâmica por vastas áreas da cidade completamente destruídas. Os dois desconhecidos acabam tendo que dividir um apartamento e se apaixonam, enquanto ela tenta ajudá-lo a vencer a depressão. Os interiores das casas de gente simples são igualmente depauperados, com vidraças e espelhos quebrados, mobília danificada, decoração detonada – e um cartaz de "Deutschland" significativamente decaído. Em contraste, a casa do vilão, um ex-capitão nazista agora convertido em industrial, é um ambiente burguês irretocável.
As ruínas de Berlim desempenham aqui o típico papel ambivalente. São a imagem do espírito do país, por onde correm ratos e se tropeça em sepulturas (numa cena, o ex-nazista chuta irreverentemente um capacete de soldado perdido nos escombros). Mas é também das ruínas que brota a salvação: quando Mertens está a ponto de matar o ex-capitão, responsável pela execução fria de dezenas de homens, mulheres e crianças, eis que uma mulher sai de uma casa semidestruída em busca de socorro para a filha agonizante, assim interrompendo o ato e ao mesmo tempo criando a oportunidade para Mertens superar o seu trauma. Como em vários Trümmerfilme, são vistos berlinenses trabalhando na recuperação da cidade e crianças fazendo dos destroços o possível parque de diversões.
Os Assassinos Estão entre Nós recupera traços do expressionismo alemão no uso de um intenso chiaroscuro, na iluminação que também remete ao filme noir e em tomadas de cenários em diagonal. A intenção de usar as ruínas como dado estético chega ao paroxismo no passeio noturno de Mertens e Susanne, quando as carcaças dos edifícios de uma rua aparecem teatralmente iluminadas, numa proposta distante de qualquer ideia de realismo (veja mais disso em Cinegrafia recorrente).
Os Assassinos Estão Entre Nós: ruínas iluminadas
A estetização das ruínas tem raízes no imaginário do Romantismo alemão, que ecoou no III Reich. O arquiteto Albert Speer divulgou uma Teoria do Valor da Ruína, segundo a qual as construções deveriam ser pensadas de maneira a deixar belas ruínas caso fossem atingidas por guerras ou deterioradas pelo tempo. A inspiração vinha das ruínas romanas, modelo de império almejado pelos nazistas. O próprio Adolf Hitler tinha admiração mórbida por edificações arruinadas, motivo de diversas pinturas atribuídas a ele.
Ruínas de um mosteiro em Messines, pintura atribuída a Hitler
Redenção entre os escombros
Ao contrário de outras cidades alemãs, Berlim tinha edificações sustentadas em vigas de ferro e aço, razão pela qual não desabavam inteiramente. O Trümmerfilm tendia então a retratá-las em composições em ângulo baixo, a fim de captar sua verticalidade. Ao mesmo tempo, como destacou Johannes von Moltke no ensaio Ruin Cinema, os cineastas também usavam a horizontalidade dos travellings e panorâmicas para sublinhar a extensão da devastação. Tudo isso viria a compor uma estética das ruínas própria do pós-II Guerra (ver Cinegrafia recorrente).
Essa gramática reapareceu em diversos Trümmerfilme alemães e ganhou um sentido moral particular em ... und über uns der Himmel ("... e sobre nós o céu", em tradução literal), dirigido por Josef von Báky em 1947. Esse primeiro filme rodado no setor americano da ocupação de Berlim se apoiava na popularidade do ator e cantor Hans Albers. Ele vive Hans Richter, um ex-operador de guindastes que retorna da guerra e passa a operar no mercado negro para prover as necessidades de uma nova namorada e da filha dela. Ele prospera, mas tem a consciência despertada pelo filho que volta da guerra temporariamente cego. Por fim, compreende que não é lícito enriquecer enquanto a maior parte da população luta contra a fome e trabalha duro para reconstruir a cidade. A história enfatiza as desigualdades sociais e o confronto entre trabalho e corrupção.
Há nesse filme duas grandes sequências em meio aos escombros de Berlim. Numa delas, Hans leva o filho, ainda cego, para um trajeto de caminhonete pelas ruas centrais, entre prédios completamente destruídos. A certa altura, o rapaz pergunta "onde estamos agora?". Ao ouvir que passavam pela Potsdamerstrasse, vêm-lhe à lembrança as imagens nostálgicas do lugar animado de antes da guerra: veículos, multidões de passantes, cafés lotados, bailes ao ar livre. Ele é poupado da visão das ruínas, embora tudo imagine no olhar triste.
Mais adiante, depois de uma confrontação com o filho, Hans sai em caminhada pelas ruas, observando os homens e mulheres empenhados na limpeza dos destroços e na reparação da infraestrutura urbana. Vestido com uma capa de homem rico, ele contrasta com os trabalhadores em suas roupas simples. Na trilha sonora, ouve-se a voz do próprio Hans Albers, acompanhado de um coral, entoando a canção-título do filme: "Somos leves como poeira / O que vai acontecer agora? / Devemos seguir em frente / Ainda há esperança para nós / Vamos todos recomeçar / Porque essa existência também pode ser linda / O vento sopra de todos os lados / Então deixe o vento soprar / Porque acima de nós o céu / Não vai nos deixar perecer."
Estátua de Trümmerfrau em Dresden
Ao estudar os Trümmerfilme, Bernhard Gross faz uma interessante distinção entre ruínas e escombros. Do ponto de vista material, ruínas são antigos prédios e seus fragmentos ainda de pé. Escombros são pedras e materiais demolidos que podem ou não ser usados em futuras construções. É comum vermos nesses filmes o trabalho das pessoas recolhendo e reaproveitando tijolos e artefatos, em especial a figura clássica das Trümmerfrauen (mulheres dos escombros), que participavam ativamente dos mutirões e se tornaram um símbolo da reconstrução. Veja essas cenas.
As ruínas seriam associadas ao passado, ao fracasso e à morte, enquanto os escombros seriam matéria para um recomeço, início de um futuro. Nesse limbo temporal é que se instalam os Trümmerfilme.
Um presente extremamente frágil é o que retrata, já no título, Zwischen Gestern und Morgen ("Entre ontem e amanhã"), de Harald Braun (1947). Seu personagem central é um cartunista que entrou em choque com as diretrizes nazistas e teve que fugir para a Suíça em 1937. Dez anos depois ele retorna a uma Munique arrasada pela guerra, à procura da mulher amada, agora casada com outro homem. O filme alterna os dois tempos para contar uma história rocambolesca que envolve algumas joias soterradas nos escombros do hotel em que ambos moravam. É ali, entre pilhas de destroços, que ele conhece uma jovem, ex-empregada do hotel, também conectada à questão das joias e que vai representar a sua redenção e uma nova perspectiva amorosa. Reitera-se assim a ideia de que os escombros podem guardar a salvação.
O tema das crianças vivendo entre os escombros (Trümmerkinder) é abordado com destaque em Irgendwo in Berlin ("Em algum lugar de Berlim"), de Gerhard Lamprecht, produzido em 1946. Mais um drama sobre um retornado da guerra que tenta recompor sua vida, o filme explora na primeira parte o hábito das crianças de transformar os destroços urbanos no seu parque de diversões (veja em Cinegrafia recorrente). A contraposição da inocência infantil com o cenário em ruínas chega a ser insólita. Um dos meninos resolve se submeter a um teste de coragem escalando uma ruína perigosa, da qual vai tombar para a morte. O tratamento é bem diverso do que Rossellini iria aplicar, dois anos depois, em Alemanha Ano Zero, onde também há crianças brincando entre os escombros e uma queda fatal. Rossellini usava o suicídio como um prognóstico sombrio para o futuro da Alemanha, ao passo que Lamprecht incorpora o acidente ao mito do soldado caído, algo que tornará possível a renovação para toda uma comunidade.
Assim como os norte-americanos em A Mundana, a Alemanha também fez a sua comédia nas ruínas. Berliner Ballade (1948), de Robert A. Stemmle (não confundir com o curta homônimo de Chris Marker), levou ao cinema um sucesso dos cabarés berlinenses, adaptando-o às condições do imediato pós-guerra. Eu não consegui acesso a esse filme, mas o incluo aqui pela particularidade de usar a sátira e a paródia na abordagem das dificuldades do momento. A partir de uma moldura futurista situada no ano de 2048, são narradas as desventuras de um homem comum que volta da guerra 100 anos antes e enfrenta a destruição material, a escassez, a burocracia, o desemprego e as vicissitudes do mercado negro. Ao mesmo tempo, ele fantasia com um mundo melhor no fim do arco-íris e encontra o amor de sua vida. Em sua estreia no cinema, o posteriormente célebre ator Gert Fröbe interpretava este Otto Normalverbraucher, cujo sobrenome pode ser traduzido por "Consumidor Normal".
O trailer e as poucas imagens que encontrei do filme fazem supor um agenciamento tragicômico do cenário urbano, mediante um distanciamento irônico que chegou a ser comparado com Bertolt Brecht. As descrições mencionam truques cinematográficos, interlúdios musicais e muitas alusões satíricas à disputa entre Oriente e Ocidente de que Berlim era palco.
Nem tudo seria reconstruído em Berlim, como mostraram tantos filmes posteriores. Ainda em 1986, quando Wim Wenders realizou Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin), a área da Praça Potsdamer era um grande terreno baldio, um resto de ruína. Ali o anjo Cassiel (Otto Sander) acompanha o velho Homer (Curt Bois) enquanto ele procura vestígios do lugar alegre e movimentado que frequentou antes da guerra. "Isso não pode ser Potsdamerplatz", repete, perplexo. No século XXI a praça seria remodelada e cravejada de arranha-céus.
A Potsdamerplatz em Asas do Desejo
Vale a pena citar, ainda, duas curiosidades sobre a produção alemã nos estertores da II Guerra. Uma delas é Das Leben geht weiter ("A vida continua"), tresloucado projeto de Josef Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, nos últimos meses do III Reich. Em novembro de 1944, com a guerra já perdida e os aliados desembarcados em solo alemão, Goebbels ordenou à UFA a produção desse filme monumental de propaganda para mostrar a firmeza do povo, mesmo sob o fogo cerrado do inimigo. As filmagens, sob a direção de Wolfgang Liebeneiner, foram realizadas em meio aos bombardeios de Berlim, com ruínas reconstituídas nos estúdios Babelsberg. Após a vitória definitiva dos aliados, todo o material filmado se perdeu. Um documentário homônimo de 2002 retraçou a história do projeto.
Outro caso pitoresco é o de Unter den Brücken ("Sob as pontes"), de Helmut Käutner. A história romântica de dois barqueiros que se apaixonam pela mesma mulher foi filmada em 1944, entre Berlim, Potsdam e Ketzin, seguindo o curso do rio Havel. O maior desafio da produção foi driblar os muitos prédios já bombardeados, evitando que fossem captados pelas câmeras num filme que privilegiava o trânsito aquático. A ausência das ruínas é a grande ficção de Unter den Brücken.
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