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A Trilogia de Rossellini

Roma, Cidade Aberta / Paisà / Alemanha Ano Zero

Cinco meses antes de tocar a San Pietro, a liberação chegou a Roma, em julho de 1944. Logo em seguida, Roberto Rossellini iniciava as preparações do clássico inaugural do neorrealismo italiano. O enredo de Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta) inspira-se na história do padre Giuseppe Morosini, morto pelos nazistas em 1944, e em outros episódios da ocupação alemã. O cerco se aperta contra os militantes da Resistência, que contam com o apoio da Igreja católica. Um líder comunista escapa da Gestapo, mas depois é recapturado e morto sob torturas. A noiva de um antifascista (papel memorável de Anna Magnani) é baleada ao correr atrás do noivo preso, mesmo destino do Padre Pietro (Aldo Fabrizzi) perante um pelotão de fuzilamento.

As filmagens começaram em janeiro de 1945, ainda com a guerra em curso e em condições de produção muito precárias. Com a interdição de Cinecittà, as cenas interiores foram feitas em grande parte num estúdio improvisado no antigo Teatro Capitani. Roma Cidade Aberta é um híbrido do cinema de estúdio praticado pelo próprio Rossellini no período fascista e dos primeiros ensaios do cinema de rua que se tornaria uma das marcas do neorrealismo. Roma não estava em ruínas, pois ficara "miraculosamente intacta", como dirá o narrador de Paisà, o filme seguinte de Rossellini. Mas o diretor procurou situar algumas tomadas em cenários evocativos de destruição.

 

Numa cena, o policial do bairro pergunta a Pina (Magnani) se os tais americanos existem de fato, referindo-se à expectativa da chegada dos aliados à capital. Pina aponta à sua frente e responde: "Parece que sim", enquanto a imagem corta para um prédio parcialmente demolido. É como se dissesse: "Aqueles que nos libertam também nos destroem", circunstância paradoxal e trágica das guerras. O uso dramático dos cenários de catástrofe é bastante limitado nesse filme, embora a aparição de pilhas de pedras e escombros indique que a cidade não passou incólume.

Roma Cidade Aberta
Roma, Cidade Aberta

Roma, Cidade Aberta

Paisà

Nápoles e Florença bombardeadas

 

A apropriação das marcas de destruição foi crescente na Trilogia da Guerra de Rossellini. Em Paisà (1946), isso se dá de maneira contundente em dois dos seis episódios que compõem o filme. A relação entre cidadãos italianos e soldados americanos é o traço comum nos pequenos contos de Paisà sobre a condição humana durante a guerra. Cada episódio avança um pouco em relação ao anterior, tanto na cronologia quanto na cobertura de várias regiões da Itália, da Sicília ao Veneto. Todos se iniciam com imagens documentais e uma narração que situa historicamente a ação. Aqui nos interessam particularmente o segundo e o quarto episódios, que fazem uso extensivo da devastação provocada pelos bombardeios em Nápoles e Florença respectivamente.

 

No episódio napolitano, um menino (personagem-chave em tantos filmes neorrealistas) vive de pequenos roubos nas ruas da cidade recém-liberada. Passa a acompanhar um soldado negro americano bêbado e furta suas botas enquanto ele adormece. Mais adiante, o soldado vai reencontrá-lo e descobrir que ele é órfão e mora miseravelmente nas grutas de Mergellina, refúgio de gente pobre durante a guerra e um pouco depois. Em suas andanças juntos, eles atravessam vários trechos de Nápoles destruídos por mais de 100 bombardeios de americanos, ingleses e alemães. Carcaças de prédios e montanhas de entulho contrastam com a animação do garoto e a inconsciência momentânea do soldado alcoolizado. Na cena central do episódio, os dois repousam sobre um amontoado de destroços nas ruínas da Piazza Mercato. Num devaneio, o soldado se imagina retornando à pátria como herói, mas, à medida que vai ficando lúcido, admite que não quer voltar para sua condição de pária nos EUA. Ele e o menino, afinal, se igualam como excluídos. As ruínas materiais da cidade se associam à consciência da ruína social.

Paisà
Paisà

Paisà: encontro de excluídos nas ruínas da Piazza Mercato

O quarto episódio enfoca a perigosa travessia de uma enfermeira americana (que já morara em Florença) e um partigiano de um lado a outro da cidade, à procura do líder da Resistência, o grande amor da moça. Florença está sitiada pelos alemães, embora os partigiani já controlem alguns setores e possam auxiliar os protagonistas. As locações expõem a devastação de partes da cidade e acentuam a dramaticidade da jornada dos heróis. Uma sequência os mostra atravessando um corredor ermo da célebre Galleria degli Ufizzi, onde obras de escultura ainda se encontravam encaixotadas desde o auge da guerra.

Paisà
Paisà: Galleria degli Uffizi

Paisà: Galleria degli Uffizi

Alemanha

Círculo fúnebre em Berlim

 

A decisão de concluir a Trilogia da Guerra com um filme passado na Berlim ocupada pelos aliados levou Rossellini a um cenário ainda mais devastado que o das cidades italianas. Ele teve autorização para filmar em três das quatro áreas da ocupação – americana, britânica e francesa. Em agosto de 1947, quando começaram as filmagens, bairros inteiros da capital alemã – incluídos alguns cinemas – ainda estavam reduzidos a esqueletos de construções e pilhas de destroços. Embora muitos interiores tenham sido filmados posteriormente em Roma, as dependências semidestruídas condizem perfeitamente com os exteriores berlinenses.

 

Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero) tornou-se um paradigma da utilização paradocumental de cenários de catástrofes em filmes de ficção. Ao mesmo tempo, talvez seja o primeiro grande filme a espetacularizar ruínas ainda frescas. Os créditos de abertura já aparecem sobre tomadas em movimento e panorâmicas da cidade em pedaços, ao som de música dramática. Ao longo de todo o filme, a arquitetura destroçada de Berlim estará em destaque através de diversos procedimentos: travellings descritivos, planos gerais completamente preenchidos pelos escombros, uso expressionista das locações.

A primeira sequência se passa num cemitério e a última enfoca a saída de um enterro e um suicídio. Ou seja, o filme transcorre dentro de um círculo fúnebre, com a morte e as ruínas representando o fim de uma era, mas também o marco zero (embora pouco otimista) de uma nova etapa na história da Alemanha.

Há duas referências à derrocada de Hitler que envolvem a arquitetura. Uma das panorâmicas iniciais termina significativamente sobre o Reichstag enegrecido pelo incêndio de 1933 e atingido por bombas aliadas. Em outro momento, no interior de um bunker arruinado, um personagem põe para tocar o disco de um discurso de Hitler e, enquanto ouvimos a voz do Führer prometendo triunfo ao povo alemão, vemos imagens de prédios atingidos pelas bombas, numa magnífica montagem de desconstrução de sentidos.

A história do menino Edmund Moeschke, de 12 anos, é uma das mais tristes do cinema mundial. Ele atua no mercado negro para ajudar a sustentar a família pobre, composta por um pai doente e dois irmãos mais velhos – a irmã à beira da prostituição e o irmão escondendo-se por medo do seu passado nazista. Edmund é cortejado por um ex-professor homossexual que alicia meninos para uma rede de pedófilos (cabe aqui aludir a um possível pendor homofóbico de Rossellini, que atribuía características gays a vilões como o chefe nazista e sua ajudante lésbica em Roma Cidade Aberta). Induzido pelas palavras do professor nazista, no sentido de que os fracos devem ser sacrificados para que os fortes sobrevivam, e pelas queixas do próprio pai quanto ao desejo de morrer, Edmund decide envenená-lo. O peso da culpa e da rejeição o conduz ao gesto trágico de se atirar para a morte de um prédio em ruínas.

 

Os espaços urbanos assumem diferentes significados ao longo do filme. Há o tratamento frontalmente documental, como nos travellings pelas ruas e na sequência em que um grupo de soldados americanos visita a Chancelaria, local em que Hitler e Eva Braun foram encontrados mortos. Os movimentos de câmera que acompanham Edmund foram planejados de forma a descrever o estado da cidade, partindo de closes do menino para planos gerais do entorno. Consta que grande parte das filmagens em Berlim foram dirigidas por Carlo Lizzani enquanto Rossellini estava em Roma resolvendo pendências amorosas advindas de seu caso extraconjugal com Anna Magnani.

Destaca-se sobretudo o tratamento simbólico e dramático, intensificado no último ato, quando Edmund vagueia pelas ruas abatido pelo remorso e ao mesmo tempo tentando reconciliar-se com a inocência e com uma infância até então impossível. As cicatrizes da destruição se convertem em brinquedos: a pedra que ele faz de bola, as manchas de bombas no chão usadas como pontos de salto, a viga do prédio semidemolido transformada em escorregador. Esse périplo final do garoto vai ganhando aos poucos um tom expressionista – sinistro e trágico. As sombras das ruínas se projetam na rua como signos de culpa, e as aberturas das bombas nas paredes das construções parecem convidar ao ato extremo.

Alemanha Ano Zero
Alemanha Ano Zero
Alemanha Ano Zero
Alemanha Ano Zero
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Alemanha Ano Zero costuma aparecer na lista de filmes integrantes do subgênero Trümmerfilm (filme de escombros), que floresceu na Europa nos anos do imediato pós-II Guerra. As indústrias cinematográficas da Alemanha, Itália e países do Leste europeu procuraram se reerguer explorando histórias de culpa, redenção e superação passadas nos cenários das cidades mais duramente afetadas pelo conflito. Personagens empenhados na reconstrução material e moral de suas vidas e identidades dilaceradas transitavam entre os destroços, enfrentando pobreza, perdas materiais e humanas, traumas de guerra, bem como confrontando a responsabilidade pelo genocídio e o fracasso do nazismo. O início da desnazificação da Alemanha atravessa esses filmes em filigrana.

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