Estrangeiros no Trümmerfilm
Perdidos na Tormenta / Ilusão Perdida / Expresso para Berlim / A Mundana / Filhos de Hiroshima
Além de uma relativamente longa lista de títulos alemães, o gênero Trümmerfilm abrange filmes realizados na Europa do pós-guerra por diretores de outras procedências. Exemplos notáveis, afora Alemanha Ano Zero, são Perdidos na Tormenta (The Search, Fred Zinnemann, 1948), A Mundana (A Foreign Affair, Billy Wilder, 1948) e O Terceiro Homem (The Third Man, Carol Reed, 1949, rodado em Viena). As plateias estrangeiras, acostumadas às imagens de uma Europa em ruínas nos cinejornais, recebiam esses filmes como semidocumentos que atendiam à demanda de verossimilhança na ficção.
Montgomery Clift, o bom soldado
Perdidos na Tormenta é tido como o primeiro filme americano feito na Europa após a II Guerra. As filmagens ocorreram em áreas ocupadas pelo Exército americano. O roteiro, escrito a 14 mãos, inspira-se na história das muitas crianças que sobreviveram órfãs nos campos de concentração e ficaram vagando por uma Alemanha miserável. Karel (Ivan Jandl), menino tcheco traumatizado pela separação da mãe em Auschwitz, encontra-se num abrigo americano em cidade alemã não identificada. Durante uma transferência para outro local, atemorizadas pela ideia de estarem sendo levadas para mais um campo de concentração, as crianças fogem da ambulância da Cruz Vermelha. Karel é encontrado pelo soldado Steve (Montgomery Clift), que passa a cuidar dele. Enquanto isso, a mãe de Karel (a cantora lírica Jarmila Novotná) erra pelo país à procura do filho.
Alguns dos momentos mais dramáticos de Perdidos na Tormenta se passam nos escombros das cidades alemães de Nuremberg, Munique, Ingolstadt e Würzburg. A sequência do transporte das crianças numa caravana de ambulâncias enseja uma visão documental impressionante de ruas arruinadas. Logo em seguida, a fuga do garoto protagonista tem sua dramaticidade potencializada pelos quarteirões bombardeados que ele atravessa. A influência do neorrealismo em geral e de Alemanha Ano Zero em particular se faz sentir nessas passagens em que o menino Karel projeta seu desamparo nos destroços urbanos.
Vestígios do Trümmerfilm podem ser encontrados, ainda, numa produção americana parcialmente filmada em Berlim, em 1949. Ilusão Perdida (The Big Lift), de George Seaton, se passa durante o bloqueio de Berlim Ocidental pelos soviéticos, quando os americanos fizeram mais de 200 mil voos levando suprimentos e combustível para os berlinenses.
Entre muitas cenas de aviação, o filme narra as relações de dois militares americanos com mulheres alemães. A crônica dramática da situação dos berlinenses convive com elementos de comédia, satirizando a dependência dos alemães em relação ao mercado negro e à troca de favores, a atuação dos espiões russos, o preconceito antigermânico de certos americanos e a discussão das fronteiras entre os setores da ocupação. Passados os primeiros tempos de acomodação do imediato pós-guerra, já estamos aqui em plena Guerra Fria. Uma jovem alemã aprende sobre democracia e liberdade com um oficial americano cínico que a tomou como amante.
Na pele do mecânico Danny MacCullough, Montgomery Clift vive papel semelhante ao que desempenhou em Perdidos na Tormenta: um soldado de bom coração disposto a ajudar. Ele se apaixona por uma Trümmerfrau, Frederica (Cornell Borchers) e pretende casar-se com ela antes de se descobrir vítima de um engodo. Durante um passeio do casal (típico artifício do subgênero para descortinar áreas devastadas), vemos os restos das estátuas de reis e nobres da Siegsallee (Alameda da Vitória), mandada construir pelo kaiser Guilherme II em 1895 e eliminada do mapa pelos aliados pouco tempo depois da guerra. Em outras cenas, Danny, sem uniforme e sem documentos, foge da polícia cruzando diversos pontos nobres da cidade, como o Tiergarten, o Portão de Brandenburgo e o Reichstag.
Em Ilusão Perdida, as ruínas e os escombros são enfocados com fatalismo. Quando o namoro entre Danny e Frederica parece chegar a um impasse definitivo e os dois se afastam, parte de um edifício desaba por trás dela (veja a cena). De resto, não há simbolismos no filme, mas apenas decadência, oportunismo e terreno fértil para a disputa ideológica das mentes abaladas pela guerra.
Ação e comédia nos destroços
As cidades alemães em cacos do pós-guerra não foram cenários somente de dramas como os citados até aqui. Serviram também de pano de fundo para o thriller de ação O Expresso de Berlim e a comédia romântica A Mundana, ambos de 1948. Era um salto importante. As ruínas dos derrotados passavam a ser ingredientes adaptáveis ao filme de gênero hollywoodiano.
Expresso para Berlim (Berlin Express), de Jacques Tourneur, é a história rocambolesca de um complô nazista para sequestrar o venerando Dr. Bernhardt (Paul Lukas), que preside um comitê pela unificação da Alemanha. Boa parte do filme se desenrola no interior de um trem, que parte de Paris levando Bernhardt, sua secretária francesa (Merle Oberon), um perito agrícola americano (Robert Ryan), um professor inglês (Robert Coote), um tenente soviético (Roman Toporow), um empresário alemão (Fritz Kortner) e um cidadão francês (Charles Korvin). Um atentado a bordo antecede a chegada do trem a Frankfurt, onde todos se envolverão com a procura de Bernhardt.
O filme começa em vários cartões postais de Paris, elogiada como "a mais bela cidade do mundo". Fica criado o contraste com o conjunto de ruínas e escombros descortinado nas cidades alemãs. Na ocasião da chegada a Frankfurt e depois a Berlim, um narrador em voz over assume os trabalhos em tom de cinejornal, descrevendo o panorama com uma ponta indisfarçável de orgulho: "A maior cidade-fantasma que você já viu. Uma comunidade de cascas vazias destruídas pelos bombardeios aliados segundo um plano metódico. Um plano que haveria de neutralizar a cidade como importante centro inimigo, mas manteria alguns pontos estratégicos". Sobre as imagens dos prédios da IG Farben, fabricante de insumos bélicos e do pesticida Ziklon B, usado nas câmaras de gás nazistas, a narração ganha coloração mais cívica: "Os garotos dos bombardeiros aliados cuidaram para que não fossem destruídos porque seriam o escritório ideal para a imposição da paz. Ali os soldados americanos ajudam a construir a história do mundo atual".
Entre caminhadas e perseguições em meio aos destroços de Frankfurt, Expresso para Berlim não demonstra maior comoção com a paisagem, que bem poderia ser uma mata ou um parque de diversões. Há mesmo um personagem disfarçado de palhaço sendo caçado através de quarteirões inteiramente arruinados. A área do Römer, o centro histórico da cidade belissimamente reconstruído depois da guerra, é visto então como um painel de esqueletos arquitetônicos enegrecidos. O clímax do thriller se passa nos porões de uma grande fábrica de cerveja igualmente dilapidados, onde os heróis vão se confrontar com os vilões contrários à unificação da Alemanha.
Expresso para Berlim: Römer destruído
Expresso para Berlim: o palhaço entre ruínas
Gozo com o inimigo derrotado
Nas cenas de abertura de A Mundana (A Foreign Affair), imagens aéreas de Berlim devastada aparecem como sendo filmadas por um dos personagens, um membro do comitê do Congresso de Washington que chega de avião para investigar a conduta moral das tropas americanas de ocupação. As imagens tinham sido feitas, dois anos antes, por um cinegrafista durante viagem de Billy Wilder a Berlim, cidade onde ele havia trabalhado como jornalista e iniciado carreira no cinema como roteirista. O tom de cinismo, na fronteira da impiedade humana, se instala desde aí. A paisagem de ruínas é comparada pelos congressistas a "um bando de ratos roendo um pedaço de roquefort bolorento" e a "vísceras de galinha frita". Um deles recomenda: "Deviam plantar grama e botar um rebanho de bois".
As filmagens de Wilder no outono de 1945 foram o elemento detonador das ideias de A Mundana. Várias daquelas tomadas ilustram, em retroprojeção, o tour de recepção da delegação americana pelos marcos da cidade, como o Reichstag, a Chancelaria de Hitler e o Portão de Brandenburgo, comentados com humor ácido pelo coronel que comanda a tropa. Mais adiante, a sequência descritiva de um jipe percorrendo os trechos mais arrasados da cidade ganhou uma trilha musical (de Friedrich Hollaender) tão jubilosa que ficaria mais adequada a um passeio de verão pela Côte d'Azur.
Esse tipo de abordagem sugere a existência de um subgênero que ganhou do crítico americano Denis Lim o nome de "disaster tourism films" (filmes de turismo de desastre). Estes seriam marcados pela incidência de travellings de uma paisagem devastada, geralmente vista através da janela de um veículo (veja em Cinegrafia recorrente). Nesses casos, não transparece um vínculo moral entre o filme e seu objeto, nem tampouco uma valoração simbólica da paisagem. Em A Mundana, prevalece um certo gozo na contemplação do inimigo derrotado.
As autoridades americanas em Berlim e Washington não viram com bons olhos as referências jocosas ao estado da cidade. Numa cena, diante de garotos jogando bola em meio aos destroços, um congressista comenta: "Pelo menos não precisam se preocupar com janelas quebradas". A cantora Erika (Marlene Dietrich), ex-amante de um figurão nazista que agora tem um caso com um capitão americano e entra na mira da rígida deputada republicana Mrs. Frost (Jean Arthur), indica seu apartamento dizendo que fica "a poucas ruínas daqui". No cabaré Lorelei, ela canta The Ruins of Berlin, canção que anuncia "um doce futuro" e afasta "os fantasmas do passado". Em outra chave, é a mesma noção de que a Alemanha estava vivendo um novo ano zero.
Depois do cogumelo atômico
O Trümmerfilm também chegou ao Japão, com destaque para o melodrama lacrimejante Filhos de Hiroshima (Genbaku no ko), de Kaneto Shindo, realizado em 1948. Hiroshima já estava parcialmente reconstruída, mas as marcas da bomba atômica permaneciam visíveis em vários pontos da cidade. Shindo vasculha com suas câmeras a edificação mais fotografada do Japão na época, o esqueleto do Pavilhão de Exposições da prefeitura de Hiroshima, com sua cúpula que hoje distingue o Memorial da Paz. Ele é visto pela primeira vez no passeio triste da professora Takako (Nobuko Otowa) ao retornar à cidade natal depois de quatro anos vivendo numa ilha próxima.
O prédio faz várias reaparições no filme, uma das quais servindo de fundo para um mendigo que terá papel importante na história. Esta tomada associa claramente a ruína arquitetônica à ruína humana. Hiroshima era então um lugar de miseráveis, moribundos, órfãos, pais sem filhos e mulheres estéreis por causa da radiação. A catástrofe repercute nos corpos queimados e sequelados. Uma sequência reproduz o momento da explosão mediante uma colagem infernal de imagens do cogumelo atômico e de troncos humanos dilacerados pelo calor da bomba.
Como em Alemanha Ano Zero, aqui também os créditos iniciais são sobrepostos a imagens de ruínas. Takako caminha longamente sobre terrenos baldios cobertos de pedras, seguida por uma câmera quase rente aos seus pés para enfatizar a intensidade e a extensão da destruição. Por um momento, ela passa pelo canteiro de obras do Museu do Memorial da Paz, que seria inaugurado em 1955. Sua estada em Hiroshima vai se concluir com o resgate de um menino órfão, que levará consigo ao voltar para a ilha.