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O caso Chris Marker

A rigor, o média-metragem La Jetée (1962) não deveria figurar nesta pesquisa, uma vez que Chris Marker não filmou nenhuma paisagem pós-catastrófica, mas usou apenas fotografias de autoria desconhecida. Mesmo assim, trago o filme aqui por algumas razões especiais, como uma quase-exceção.

 

Primeiro, porque Chris Marker é um realizador de exceção, que justifica um tratamento excepcional. Na sua produção de filmes, fotos e colagens, o tema das ruínas aparece com frequência, embora nem sempre no sentido estrito. Marker alude às ruínas do tempo e da história na acepção benjaminiana. A imagem, para ele, é um acesso ao passado e também uma preparação de devir, uma vez que constituirá uma lembrança no futuro.

Tomorrow the Moon

Colagem da exposição virtual Pictures at an Exhibition, de Chris Marker (2008)

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La Jetée é um pequeno filme experimental de ficção científica e romance composto somente de imagens fixas, narração e música. Há apenas duas exceções de movimento: uma panorâmica sobre foto de um Arco do Triunfo amputado e cinco segundos de um despertar da personagem feminina. Marker o apresenta como um "photo-roman", ou fotonovela. A referência aos quadrinhos também é possível, a crer na citação do herói da revista mexicana El Santo na camiseta do protagonista na cena final.

 

A ação se passa um pouco antes e um pouco depois de uma III Guerra Mundial, em época indeterminada. Uma hecatombe nuclear tornou inabitável a maior parte da superfície da Terra, restando à espécie humana viver não mais no Espaço, mas somente no Tempo. Paris foi destruída e, nos subterrâneos do Palais de Chaillot, os "vencedores" submetem os "vencidos" a experiências de transporte no tempo. Um desses últimos é o personagem central (Davos Hanich), que está sendo enviado em sucessivas viagens ao passado por meio de injeções.

 

Quando menino, na plataforma de observação (jetée) do Aeroporto de Orly, ele avistou um rosto doce de mulher (Hélène Chatelain) e, logo em seguida, um homem cair morto. Essa lembrança traumática (ou imagem-cicatriz) agora lhe fornece um corredor temporal conveniente para a experiência científica. Nos vários retornos ao passado, ele reencontra a mulher e com ela visita diversos pontos de Paris. É enviado também ao futuro, onde faz contato com humanos avançados, dotados de algo como um implante eletrônico da testa. Por fim, depois de utilizado pelos cientistas, ele é mandado de volta à cena original no aeroporto e compreenderá que o homem assassinado é ele próprio.

 

O paradoxo temporal rejeita interpretações fáceis de La Jetée. Certo, porém, é que o filme nasce da paranoia nuclear dos anos 1950 e 60, ainda sob a vigência das cicatrizes da II Guerra Mundial. O local onde se realizam as experiências é referido como "o campo", e ali se ouvem murmúrios em alemão. Uma sequência na parte inicial do filme mostra Paris devastada pela III Guerra Mundial com a utilização de 14 fotografias de lugares diversos ao som do canto religioso Krestu Tvoyemu ("Nós veneramos Vossa cruz") pelo coro da Catedral de Alexandre Nevski.  

 

As primeiras imagens dessa sequência não sugerem destruição, mas apenas uma visualidade obscura e sinistra:

La Jetée

Por algumas inscrições pode-se perceber que há fotos de Paris, provavelmente de demolições:

La Jetée

Outras sugerem locais bombardeados durante a II Guerra Mundial. São prédios e fachadas arruinadas, além do interior de uma catedral entulhada de escombros. A textura de algumas imagens insinua que foram feitas a partir de fotos já em suporte impresso.

La Jetée
La Jetée
La Jetée

A ressignificação das fotografias de catástrofes ou destruições passadas para servir à ficção antecipatória é um dos usos mais frequentes desse tipo de iconografia (ou cinegrafia). Estão aí embutidas as noções de que a história se repete e de que a memória não é capaz de nos proteger de danos futuros. 

 

Além dessa sequência especificamente dedicada, há outras alusões a ruínas em La Jetée. Os subterrâneos de Chaillot, cujo estado aparenta o de um porão medieval, abriga uma série de estátuas carcomidas, que são associadas à deterioração dos "vencidos" da guerra. Especialmente intrigante é uma das fotografias da plataforma do aeroporto, em cujo quadrante inferior esquerdo se vê as inscrições "Démolition" e "Fin 1961" sobre o que parece ser dois galpões. Estariam ali por acaso na realidade fotografada ou seriam mais um enigma plantado por Chris Marker?

La Jetée

 

 

Clique na imagem para ampliar

La Jetée pode ser visto na íntegra, legendado em português, aqui

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