Kiarostami na fenda entre fato e ficção
E a Vida Continua
Em 21 de junho de 1990, um terremoto de magnitude 7,7 na escala Richter atingiu a região nordeste do Irã, deixando um saldo de aproximadamente 50.000 mortos. Três dias depois, Abbas Kiarostami e um de seus dois filhos passaram um dia viajando de carro pela área devastada, em busca de informações sobre os meninos que protagonizaram o filme Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, rodado três anos antes naquelas paragens. Cinco meses mais tarde, o cineasta começava a filmar E a Vida Continua (Zendegi va digar hich, literalmente "A vida e nada mais"), que nada mais é do que uma dramatização da sua própria viagem, agora com atores nos dois papéis (Farhad Kheradmand e o menino Buba Bayour). A ação se passa cinco dias após o abalo sísmico.
No carro desgastado do próprio Kiarostami, os atores se deslocam por estradas engarrafadas e caminhos vicinais, observando lugarejos arruinados, carros esmagados por enormes pedras, famílias desabrigadas ocupando tendas de plástico, covas a céu aberto, fendas profundas cavadas nas montanhas. Chegar à cidade de Koker requer desvios e a proverbial persistência iraniana. Os limites entre o factual e o ficcional são quase indiscerníveis, uma vez que Kiarostami – como é seu hábito – borra permanentemente a fronteira entre os dois registros e semeia ambiguidades sobre o coeficiente de realidade documental nos seus filmes.
Parte do visual catastrófico de E a Vida Continua foi ligeiramente cenografado, embora sempre a partir da conformação real. É lícito supor que os móveis e apetrechos domésticos que vemos entre as ruínas foram dispostos a fim de simular o imediato pós-catástrofe. Até o grande engarrafamento que leva os dois personagens a tomarem um caminho alternativo foi produzido especialmente para o filme. Sobreviventes do terremoto foram convidados a descrever o acontecimento e falar dos familiares que perderam, como se o desastre houvesse acontecido há cinco dias, e não há cinco meses. Outros personagens são inteiramente ficcionais, como o rapaz que driblou o luto e se casou 24 horas depois do sismo. Este viria a ser um dos plots principais do filme seguinte do diretor, Através das Oliveiras, conclusão do que a crítica batizou de Trilogia Koker. A autorreferência está na base dos dois últimos filmes da trilogia, cada um realizado a propósito do anterior.
À medida que o diretor e seu filho se afastam da rodovia asfaltada e tomam as rústicas estradas rurais, muda o panorama sonoro. O ruído de veículos e sirenes é substituído pelo silêncio, cortado apenas pelo motor do carro e, vez por outra, a música de Mozart. Uma parada do diretor e seu filho num vilarejo revela o cotidiano das pessoas comuns nas casas que restaram de pé, algumas semidestruídas ou com rachaduras ameaçadoras.
A maneira como o diretor e seu alterego dentro do filme observam a paisagem em ruínas e os sobreviventes não é sentimental, mas com um toque de fatalismo característico da visão que Kiarostami tinha da morte. Embora seja um grande travelling pelo cenário da catástrofe, E a Vida Continua lança, como sugere o título, um olhar de ternura para com quem sobreviveu. "Estar vivo é a arte mais sublime", diz um homem idoso que supostamente participou de Onde é a Casa do Amigo? e é reencontrado nessa viagem. O filme pontua o contraste entre a destruição e a continuidade, seja nos refrigerantes que o filho do cineasta insiste em comprar, seja nas pessoas empenhadas na reconstrução de suas casas e na recomposição dos bens perdidos. Ou ainda no olhar dolorido e inocente das crianças. O interesse pelos jogos da Copa do Mundo, especialmente os do Brasil, é um índice reiterado da ideia de que a vida, apesar de tudo, segue adiante.
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