A alegre enchente
Uma História de Água
Um dos tratamentos mais pitorescos de um desastre climático, na fronteira da ressignificação de uma paisagem catastrófica, é o curta-metragem francês Uma História de Água (Une Histoire d'Eau), assinado por François Truffaut e Jean-Luc Godard nos primórdios da Nouvelle Vague. As inundações de fevereiro de 1958 na região de Montereau, a sudeste de Paris, perdem completamente seu caráter dramático em benefício de uma comédia burlesca dedicada a Mack Sennett, o "King of Comedy" do cinema mudo americano.
Em função do adiamento da produção de Temps Chaud, que nunca seria realizado, Truffaut filmou em dois dias o périplo de uma jovem estudante (Caroline Dim) pelo cenário da enchente do rio Loing. O evento, de regularidade anual, chamou a atenção do cineasta em 1958 por ocorrer numa área onde ele havia acampado quando criança. Valendo-se basicamente de improvisações dos atores, Truffaut imaginou as dificuldades da moça para fazer o trajeto entre Villeneuve-St.Georges e Paris, a fim de comparecer a uma aula. Com a região inundada desde a porta de sua casa, ela tenta vencer a distância primeiro a pé, depois em barco, bicicleta, e finalmente aceitando a carona de um homem (Jean-Claude Brialy), com quem inicia um flerte.
No entanto, enquanto filmava, Truffaut teve uma crise de consciência por estar criando um divertimento em meio ao desastre real. Dando o material por imprestável, desistiu do projeto, que foi então abraçado por Godard para montar e inserir uma narração pela voz da atriz Anne Collette e pequenas intervenções dele próprio. Assim o filme ganharia seu tom de comentário leve e intelectualizado, cheio de digressões e citações a escritores e artistas, bem como jogos de palavras típicos do discurso godardiano. O título original do filme é já um trocadilho com o clássico romance erótico Histoire d'O, de Pauline Réage.
Une Histoire d'Eau evoca o gosto do cinema burlesco de Mack Sennett pela destruição e as catástrofes. Enquanto a cidade e seus arredores ficam paralisados pelas inundações, o casal se movimenta e gesticula incessantemente, destoando da atmosfera de consternação que imobiliza os habitantes. Há mesmo uma alusão jocosa à enchente quando a voz feminina compara os beijos do rapaz a uma inundação em seus lábios. A situação periclitante torna-se cômica pelo diletantismo da narração e a desarticulação entre corpos e vozes. A paisagem desfeita pela água é apenas um empecilho para a estudante atingir seu objetivo (chegar a Paris), além de favorecer um possível romance en route.
Godard tinha grande interesse pela ideia de catástrofe, embora não pelo cinema-catástrofe. O conceito reaparece em vários momentos de sua obra. Num dos episódios da série televisiva Six Fois Deux (Sur et sous la communication), de 1976, ele entrevistou o matemático René Thom, autor de uma Teoria da Catástrofe. Em 2008, realizou uma vinheta para o festival Vienalle intitulada Une Catastrophe. Filme Socialismo (2010) foi em grande parte filmado no transatlântico Costa Concordia, que iria a pique dois anos depois, ceifando 32 vidas. O seu segmento para o longa 3x3D (2013) chamava-se The Three Disasters. A Guerra da Bósnia foi abordada por ele no vídeo Je Vous Salue, Sarajevo (1993), no longa Para Sempre Mozart (1994) e no seu episódio A Ponte dos Suspiros para o filme As Pontes de Sarajevo (2014).
Na montagem de Uma História de Água, além de atomizar o material filmado por Truffaut, Godard inseriu cenas documentais como os planos aéreos de vastas extensões de terras tomadas pelas águas, sonorizados com percussão afro-cubana. Desenha-se, assim, uma bizarra combinação do documental com o ficcional. Ao fim e ao cabo, o sentimento da catástrofe passa ao largo do filme, tal como dos personagens.
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